Nova York, Setembro de 2000

Vida de aspirante a auror não era fácil. E se você é um calouro da Academia de Aurores de Nova York, então sua vida é um inferno. Todo dia os veteranos fazem questão de lembrar que calouros não são nada e nos aterrorizam com profecias furadas de que só menos da metade daquela turma de perdedores ia se formar em três anos. Era um saco, claro, mas eu nunca reclamava. Agüentava as provocações e insultos sem revidar, pois dali a um ano seria a minha vez de infernizar a vida de alguém e eu faria isso com maestria.

O veterano que mais pegava no meu pé era um legitimo nova iorquino cheio de orgulhoso de sua cidade chamado Stevens. Ele não aceitou muito bem a minha afirmação de que a Califórnia era melhor que Nova York e desde então passou a me perseguir, tentando a todo custo me fazer desistir. Eu dividia o quarto com um garoto de Nova Jersey chamado Eric Chambers e se pegavam no meu pé por ser da Califórnia, Eric sofria o dobro de provocações graças à rixa que existia entre Nova York e Nova Jersey, a cidade vizinha.

Shannon também não estava se saindo muito bem no quesito provocação. Ela e a outra única garota estudando na Academia, Rachel Aldrin, dividiam um quarto e eram muito mais cobradas que qualquer um dos outros garotos. Elas mesmas se esforçavam mais que o normal para não darem motivo de implicâncias ou provocações, mas se ainda existia certa resistência dos calouros da nossa turma contra a presença delas, aquilo acabou no dia que tivemos a nossa primeira aula de luta trouxa.

‘Muito bem, perdedores, hoje vamos ver quem consegue derrubar um adversário sem usar a varinha’ o auror Cartwirght, nosso instrutor do dia, andava entre a turma enquanto falava ‘Vocês vão lutar com protetores hoje, porque não quero ver nenhuma mariquinha choramingar, mas essa moleza é só por hoje!’

‘Ah, assim é moleza, até uma garota luta’ Barnett falou rindo e alguns dos garotos o acompanharam.

‘Cadete Barnett, um passo a frente’ o auror ordenou e ele obedeceu, já pegando o equipamento ‘Cadete Austen, um passo a frente’

‘Isso vai ser divertido’ Barnett provocou, vendo Shannon se preparar para a luta com bastões de espuma.

Os dois se posicionaram já protegidos pelos coletes e capacetes também de espuma e ao sinal do auror, começaram a luta. Barnett começou avançando para cima de Shannon, que apenas recuava e desviava dos golpes dele, até que ele a desequilibrou e ela quase caiu. Barnett já estava rindo, cantando vitoria, quando Shannon ficou de pé outra vez e deu inicio a uma sucessão de golpes pra cima dele, conseguindo o derrubar em menos de um minuto. A turma inteira urrava, incentivando ela a bater mais. Shannon batia com o bastão no capacete dele com muita rapidez e Barnett já devia estar ficando tonto, porque ergueu as mãos, derrotado.

‘Da próxima vez que desafiar alguém para um duelo, certifique-se primeiro de que é você quem vai vencer a luta, e não a outra pessoa, otário’ ouvi Shannon falar com o bastão pressionado contra o peito dele e depois se afastou, voltando para a fila.

‘Girl Power, sister’ Rachel ergueu o punho e Shannon fez o mesmo, arrancando alguns risos na fila.

‘Muito bem, seus maricas. Se mais ninguém quiser ser humilhado pela Cadete Austen, é melhor começarem a se dividir em duplas e lutarem!’

A turma mais que depressa se dividiu em duplas e se equiparam com as espumas, enchendo a sala com o barulho dos bastões batendo com violência contra os coletes. Depois dessa surra, acho que Shannon e Rachel iam passar a serem mais respeitadas na Academia, do contrário, mais alguns cadetes seriam humilhados por duas garotas.

ººººº

Nossa primeira semana de aula na Julliard havia finalmente chegado ao fim e eu não poderia estar mais acabada. Todas as aulas da divisão de dança eram extremamente puxadas e os professores eram tão exigentes que me faziam sentir falta da professora Mesic. Apesar de ser uma sexta-feira e a maioria dos alunos estarem saindo do campus para ir para casa ou apenas passear, minha maior ambição era passar uma mistura que meu tio Heinrich havia me ensinado nas pernas, na expectativa de que a dor passasse.

‘O que tem nessa coisa?’ Georgia torceu o nariz da cama dela, me vendo sentada no chão massageando as pernas com uma pasta roxa ‘O cheiro é muito forte!’

‘Essência de Murtisco especial dos Stanislav’ respondi rindo, cheirando a pasta ‘Receita pessoal do meu tio curandeiro. É muito boa’

‘Não vai sair com o Micah hoje?’

‘Só se ele vier me carregar no colo, não consigo dar dois pas-’

Minha frase foi interrompida quando a porta do quarto abriu com violência e cinco pessoas encapuzadas entraram, nos agarrando pelos braços e pernas e cobrindo nossos rostos com capuzes. Começamos a gritar e nos debater, mas senti uma mão pressionado um pano contra o meu nariz e me senti tonta, sem forças pra continuar resistindo, então me deixei ser carregada por quem quer que estivesse me seqüestrando.

Já havia sido advertida por uma menina do segundo período que em Julliard também aconteciam trotes, então não me desesperei, pois sabia que devia ser isso. Georgia também havia parado de gritar, deviam tê-la dopado com o mesmo que eu, e depois de sentir que estava sendo carregada escada abaixo por muitos andares, fui largada sem muita delicadeza dentro de alguma coisa dura e apertada. Senti outro corpo, provavelmente Georgia, bater no meu, seguido de uma porta de fechando. Continuei sem me mexer, calada, então ouvi o ronco de um motor e senti que estávamos no movendo. Contorci-me no espaço apertado e consegui erguer as mãos amarradas até a cabeça, arrancando o capuz.

‘Não acredito que estamos trancadas no porta-malas de um carro’ falei bufando, arrancando o capuz de Georgia.

‘Ótimo, pra onde será que estão nos levando?’ ela resmungou também, olhando ao redor do porta-malas apertado.

A resposta veio no que pareceu uma eternidade depois. O carro parou depois de rodar por muito tempo e quando abriram o porta-malas, reconheci as veteranas que nos tiraram lá de dentro. Aquilo era mesmo um trote idiota. Vi que tinham mais quatro calouras amarradas já sendo guiadas por outras duas para dentro de um edifício velho e olhei rápido ao redor, mas não reconheci onde estava. Elas nos encapuzaram outra vez e subimos muitos lances de escadas naquele prédio abandonado, até que finalmente pararam e nos livramos das vendas.

‘Bem vindas a Hell Week’ uma das veteranas, Casey, falou animada ‘Esse é o prédio original da New York High School of Performing Arts, a antecessora da nossa amada Julliard’ e estendeu os braços, indicando a sala a nossa volta ‘Esse solo é sagrado e para sair daqui, vocês terão que encontrar o caminho mais rápido. A dupla que chegar primeiro a sala onde vamos aguardá-las, com as chaves da porta, está livre da Hell Week. As duplas perdedoras não serão poupadas. Boa sorte’

Casey e as outras veteranas começaram a rir e saíram da sala, nos deixando sozinhas. Georgia imediatamente agarrou meu braço e saiu me rebocando para fora da sala, nos separando das outras calouras. O prédio era mesmo imenso e completamente abandonado. Entramos e saímos de antigas salas de aula e cada uma delas tinha uma pista para encontrarmos as chaves, contando histórias da época que a escola funcionava. E reparei que era possível chegar até as chaves seguindo três caminhos diferentes, para que cada dupla ficasse com um e vencesse a que fosse mais rápida.

Vez ou outra ouvíamos gritos vindos de outros corredores do prédio e sabia que eram as outras meninas, se deparando com as armadilhas montadas pelas veteranas. Eu já estava coberta de tinta dos pés a cabeça e Georgia havia perdido um sapato quando pisou em uma espécie de cola preta e muito grudenta, mas não íamos desistir. Precisava me livrar dos trotes, não ia agüentar ser seqüestrada outras vezes ou ter que passar por algum tipo de humilhação publica no meio de Nova York.

‘Ok, primeiro andar e três portes’ Georgia parou no meio do corredor ‘Matadouro, Sala de Preparação e Estúdio. Qual você prefere?’

‘Matadouro é nosso’ outra dupla chegou correndo e passou a nossa frente ‘Parece mais perigoso, aposto que está aqui’

‘Sala de preparação, vamos logo’ falei revirando os olhos e abri a porta. Georgia me seguiu.

‘Quem diria... Achamos as chaves’ Georgia sorriu vitoriosa vendo um chaveiro pendurado no teto e em seguida as meninas que entraram no matadouro começaram a gritar ‘Vamos dar o fora daqui, meus pés estão imundos!’

Georgia juntou as mãos para que eu pudesse subir apoiada nelas e consegui alcançar as chaves. Abrimos a porta apressadas e as veteranas estavam jogando cartas quando entramos, mas levantaram comemorando quando nos viram. Três delas saíram para resgatar as outras duas duplas e voltamos para Julliard, dessa vez sem estarmos trancadas no porta-malas. Talvez fossemos ser um pouco odiadas pelas outras calouras, mas quem se importa? Estávamos livres da Hell Week. Ah, como a vida justa...

Nova York, 1º de Setembro de 2000

‘Bom, acho que é aqui que nos separamos’ Falei respirando fundo, diante do imponente Rose Building, minha nova morada durante um ano.

‘Se você precisar de alguma coisa, qualquer coisa, não hesite em me chamar’

‘Vou ficar bem’ Sorri de leve e ele relaxou um pouco. Sabia o quanto tinha o deixado aflito nos últimos dias e agora fazia de tudo para não preocupá-lo ‘Dario e Georgia estão aqui, não vou estar sozinha’

‘A gente se vê sexta-feira’ Micah acenou para os dois mais atrás de mim e me beijou ‘Boa sorte’

‘Pra vocês também’

Ele sorriu uma última vez e desaparatou, me deixando sozinha pela primeira vez em semanas. Respirei fundo mais uma vez e caminhei até meu primo e Georgia, e entramos os três juntos no edifício. Os 12 últimos andares do Rose Building abrigavam os dormitórios da Escola Juilliard e quando chegamos ao primeiro dos 12 andares, encontramos o restante da turma de calouros já reunida, fomos os últimos a chegar. O primeiro andar parecia ser uma área comum a todos os alunos, com televisão, cozinha, lavanderia e algumas máquinas com lanches rápidos.

‘Bom dia, calouros’ Uma voz animada chamou a atenção de todos ‘Meu nome é Stacy Freeman, sou a monitora responsável pelo tour desse ano. Como todos já perceberam, essa é a nossa sala comunal, onde os alunos costumam relaxar nos finais de semana ou depois de um dia exaustivo de aulas. Agora me acompanhem, vou mostrar os demais andares antes da aula inaugural’

A monitora chamada Stacy começou a andar pelos corredores, usando as escadas no lugar dos elevadores para guiar a nova turma de alunos. Enquanto passávamos pelo restante dos 12 andares, ela apresentava alguns dos veteranos que encontrava pelos corredores e explicava o que íamos encontrar em cada um dos andares, além dos dormitórios. A turma olhava a tudo com fascinação. Sonhava com o dia que entraria para a mesma escola que minha mãe se formou desde que era criança, mas agora que o dia havia chegado, parecia ser um sonho do qual eu despertaria muito em breve.

‘Agora que já apresentei todos os nossos andares, vocês terão meia hora para conferirem se todos os seus pertences já estão nos dormitórios que estão marcados em suas cartas e depois sigam para o nosso auditório, que fica localizado no primeiro andar do edifício’ Ela olhou para os calouros sorrindo animada ‘Bem vindos a Juilliard!’

‘Vou checar com quem estou dividindo o quarto, encontro vocês daqui a pouco’ Dario se despediu e desceu as escadas apressado.

‘Bom, segundo a carta que recebi, meu dormitório fica no andar debaixo’ Falei enquanto consultava o papel em minha mão.

‘O meu também, mas vou tirar uma dúvida com aquela menina, encontro você depois’ Georgia também se despediu e sumiu entre os alunos que procuravam seus quartos.

Acabei descendo sozinha até o andar onde estava localizado meu quarto. Era a segunda porta do longo corredor, logo depois de passar por uma pequena sala com sofás, uma televisão e dois computadores. A porta ainda estava fechada, o que indicava que minha nova companheira de quarto ainda não havia encontrado o local. O quarto era todo branco e tinha uma cama de cada lado, com um criado-mudo para cada uma delas. Tinha uma mesa de estudos com algumas prateleiras vazias e nenhum tipo de decoração, que deveria ficar a critério dos novos moradores. Escolhi logo a cama mais afastada da porta e sentei devagar, alisando o colchão enquanto observava cada canto do novo quarto.

‘Ei, companheira de quarto!’ Ouvi uma batida na porta e quando olhei, Georgia estava parada nela ‘Meio pálido esse quarto, mas acho que só precisaremos de um dia para deixá-lo com a nossa casa’

‘O que está fazendo aqui?’ Perguntei espantada.

‘Esse não é o quarto 2102?’ Georgia consultou o papel em sua mão ‘Diz aqui que é o meu quarto’

‘Dançarinos podem dividir o quarto com músicos e atores’ Repeti o que havia lido no folheto explicativo, incrédula.

‘Acho que o destino quer que a gente mantenha a amizade’ Georgia sorriu animada, ocupando a cama que havia sobrado.

‘Não precisa se preocupar, Georgia’ Acabei rindo, ainda sem acreditar que passaria um ano dormindo no mesmo quarto que ela ‘Não estava planejando fugir de você’

‘Ei, olhe só isso, caíram no mesmo quarto’ Dario entrou no quarto ao lado de um garoto de cabelos ruivos e espetados ‘Esse é o Ephram, ele é músico e está dividindo o quarto comigo’ O garoto entrou no quarto também, sorrindo um pouco sem jeito ‘Essas são Georgia e Evie, minha prima’

‘Muito prazer, Ephram’ Georgia levantou animada e apertou a mão do menino com entusiasmo.

‘Ainda é difícil de acreditar que estamos aqui’ Dario falou sorrindo eufórico.

Caminhei até a janela e pela primeira vez pude contemplar a vista que tinha da cidade de Nova York do alto do Rose Building. Dario tinha razão: era difícil de acreditar, mas estávamos mesmo em Juilliard.

ººººº

‘Ah, finalmente!’

Shannon exclamou impaciente quando aparatei na sua frente, depois de deixar Evie em frente ao prédio da Juilliard. Estávamos no bairro do Soho, diante de um prédio de aparência muito antiga. Ele tinha 4 andares e ocupava quase meio quarteirão. Era o prédio da Academia de Aurores de Nova York. Consultei o relógio e vi que já estávamos quase atrasados para a apresentação dos calouros.

‘Melhor entrarmos, não quero começar já me atrasando’ Shannon abriu a porta e o silencio da rua foi tomado por um falatório sem fim que vinha lá de dentro ‘E pelo visto, somos os últimos...’

Shannon tinha razão. Quando passamos pelo hall de entrada da Academia, todos os olhares se voltaram para nós dois, pois éramos os únicos calouros que faltavam na fila formada no centro do enorme hall. Apressamos-nos em nos juntarmos ao restante da turma e não pude deixar de notar que Shannon atraia muito mais olhares, não só da nossa turma como também de muitos veteranos. Ao me posicionar em meu lugar na fila, notei que em todo o hall, só tinha ela e mais uma garota, que também atraia muitos olhares e cochichos.

‘Atenção!’ Um garoto corpulento que devia ter seus 20 anos gritou enérgico ‘Todos em forma!’

Nossa turma continuou parada, sem saber o que fazer, mas ao ver todos os outros alunos da Academia ficarem eretos em posição militar logo percebemos que deveríamos fazer o mesmo. Um homem com uma roupa que mais parecia uma farda veio caminhando entre a fila formada por veteranos e parou na nossa frente.

‘Descansar’ Com uma única palavra sua, os demais alunos trocaram de posição para algo que deveria ser mais relaxado, mas no meu ponto de vista estava longe disso ‘Bem vindos a Academia de Aurores de Nova York, cadetes. Hoje é o começo dos três mais difíceis e sacrificantes anos de suas vidas, mas que valerão à pena. Nossa Academia é conhecida por ter o treinamento mais intenso, com métodos radicais que nos diferem das demais e nos destacam como a Academia que forma os Aurores mais astutos e bem preparados para enfrentar qualquer tipo de situação, seja ela trouxa ou bruxa’ Ele fez uma breve pausa e alguns veteranos rapidamente distribuíram um pequeno livro dentro de uma capa plástica, com uma corda para pendurarmos no pescoço ‘Durante seu primeiro ano aqui, vocês deverão andar com o manual da nossa Academia pendurado no pescoço. É o que irá diferenciá-los dos demais cadetes. O livro deve ser lido e decorado, perguntas sobre ele serão feitas a qualquer minuto e se não as responderem corretamente, serão punidos. Vocês irão encontrar tudo que precisam saber sobre a nossa instituição nele. Como nossos cadetes veteranos já perceberam, pela primeira vez, esse ano contamos com a presença de duas mulheres. Nossa Academia tem a tradição de formar apenas homens por ser a mais puxada, mas as cadetes Austen e Aldrin são bem vindas. Tanto o dormitório quanto o banheiro que será usado por ambas não podem ser abertos por magia, apenas por uma chave’

‘É melhor trancar mesmo’ Ouvi um garoto cochichar atrás de mim e outro rir.

‘Tem algo a dizer, cadete Barnett?’ O veterano que abriu passagem para o comandante gritou no ouvido dele.

‘Não’ Mesmo sem olhar para trás, podia sentir o garoto tremer. Não pude evitar um sorriso debochado.

‘Quando um superior lhe fizer uma pergunta, cadete cabeçudo, a resposta é “senhor, não senhor” e “senhor, sim senhor”!’ Ele gritou outra vez e ninguém sequer se movia na fila ‘FUI CLARO?’

‘Senhor, sim senhor!’ O garoto de sobrenome Barnett respondeu com a voz um pouco falha.

‘Assim está melhor’ O veterano se afastou do nosso grupo e voltou para o lado do comandante ‘Porque o cadete homem que for pego dentro do banheiro feminino será severamente punido e poderá ser expulso da Academia, se tiver uma ficha de punições acima de 5 deméritos’

‘Minha parte aqui terminou. Agora nossos veteranos cuidarão de vocês’ O comandante analisou calmamente cada uma das pessoas naquela fila com uma expressão intimidadora ‘Bem vindos a Academia de Aurores’

Os veteranos se colocaram em posição de sentido outra vez para deixá-lo passar e assim que o homem saiu do hall, todos avançaram para cima da gente, gritando ordens para fazermos flexões ou mesmo insultos aleatórios, que deveríamos ouvir calados e sem revidar, afinal, ninguém ia querer comprar briga com um veterano logo no primeiro dia. Sabia que não seria nada fácil sobreviver naquele lugar, mas nada me faria desistir. Meu sonho estava começando e por mais difícil que fosse conquistá-lo, eu ia conseguir.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009 11:55 Postado por Micah Sanders Wade 0 comentários
Nossa viagem à Nova York foi abruptamente interrompida com a morte do bebê. Evie ficou dois dias no hospital, em observação, e não sai do seu lado um segundo sequer. Não queria ir a lugar nenhum, não queria estar longe caso ela precisasse de mim, embora tenha passado todo o tempo calada, encolhida na cama. Tentávamos conversar com ela, mas era em vão. Ela não conversava, mas reagia quando pensava que sairia de perto. Procurava minha mão parecendo assustada e a apertava com força contra o peito, enquanto chorava.

Voltamos para a Bulgária assim que ela recebeu alta. E no momento em que pisamos de volta a mansão do avô dela, Evie se trancou no quarto. Passava o dia na cama, de pijama. Eu nunca me senti tão inútil, pois não sabia o que fazer. Cheguei a pensar que teria que hospitaliza-la outra vez. Ela não falava, não comia e nem bebia nada. Ela simplesmente não se movia. Heinrich, seu tio que era médico, definiu seu estado como catatônico, mas eu não permitia que ele falasse qualquer coisa do tipo perto ela. Eu estava com medo que isso piorasse as coisas. Eu me esforçava para tentar ajuda-la, mas estava sempre preocupado de falar algo que a aborrecesse mais, então meus esforços não eram de muita ajuda. Seus olhos estavam apagados e sua expressão era sempre sem vida. Evie estava... vazia.

O corpo do bebê foi cremado, mas Evie não tinha forças para me acompanhar a algum lugar onde pudéssemos soltar as cinzas e Tessa me aconselhou a esperar até que ela estivesse melhor. Dê tempo a ela, era o que ela dizia. Dar tempo a ela era tudo que eu podia fazer, não havia mais nada que estivesse ao meu alcance. As meninas apareciam constantemente para visitá-la e Evie nunca se recusou a recebê-las, mas quando iam embora os relatos da visita eram sempre os mesmos.

‘Ela parecia distante, como sempre’ Milla comentou enquanto as acompanhava até a sala. Evie adormecera quando elas ainda estavam no quarto ‘Não acho que tenha ouvido alguma coisa do que dissemos’

‘Já tentou fazê-la sair um pouco de dentro de casa?’ Vina perguntou ‘Não está fazendo bem a ela ficar tanto tempo trancada naquele quarto’

‘Já tentei de tudo, mas ela não reage a nada’ Admiti derrotado ‘Já cogitei até arrancá-la de lá a força, mas não tenho coragem. Eu não sei mais o que fazer’

‘A gente sente muito, Micah’ Annia apertou meu ombro ‘Queríamos poder fazer alguma coisa para ajudar, mas ela não nos dá nenhuma opção’

‘Vocês virem aqui já é de grande ajuda, assim ao menos ela não se sente sozinha, mesmo que não reaja a nada’ Agradeci e paramos perto da porta.

‘Todo mundo já passou aqui?’ Milla perguntou ‘Ela já viu todos os amigos?’

‘Todos já vieram aqui. Chris e Shannon vêm quase todos os dias também, como vocês, Georgia veio algumas vezes, mas todos já vieram pelo menos uma vez nos visitar’

‘Bom, nós usamos todas as armas que tínhamos’ Nina falou me abraçando para se despedir ‘Insista outra vez, talvez ela demonstre alguma reação’

‘Obrigado. Está acabando comigo vê-la desse jeito’

‘Acaba com a gente também, mas ela vai reagir’ Vina falou confiante e as outras concordaram.

As meninas se despediram de mim e voltei para a sala sozinho. Aquela casa era imensa e naquele momento, todos os seus hóspedes e habitantes estavam na rua, o que deixava tudo silencioso demais. Já havia me acostumado com a família barulhenta dela e não gostava mais daquela calmaria, me dava tempo para pensar. Pensar era algo que não me agradava muito nos últimos dias. Fui até o quarto automaticamente conferir se Evie ainda estava dormindo, não gostava de deixá-la sozinha quando estava acordada. Fechei a cortina para a claridade não acorda-la e voltei para o corredor sem fazer barulho. Sabia que na maioria das vezes ela passava a madrugada acordada e quando dormia, tinha pesadelos e não conseguia descansar, então as raras vezes em que ela dormia durante o dia não deixava que nada nem ninguém atrapalhasse isso.

Não voltei ao primeiro andar, entrei na sala de TV e apoiei as mãos na bancada da varanda, encarando o jardim. Thor parecia sentir o que estava acontecendo, pois não o via mais saltar pelo gramado como um canguru. Ele agora passava o dia inteiro debaixo da janela do quarto de Evie, como um verdadeiro cão de guarda. Quando a ouvia chorar, chorava junto. Ele me lembrou meu cachorro, quando minha avó morreu. Han passou todo o velório sentado ao lado do caixão e não teve ninguém que conseguisse tira-lo de lá. Eu não fui ao enterro, mas me contaram que ele seguiu o cortejo ao lado dele e passou a noite no cemitério, só voltou para casa no dia seguinte pela manhã. Pensar em deixar Thor aqui quando nos mudássemos para Nova York era horrível, mas não permitiam cachorros no alojamento da Academia de Aurores e muito menos em Juilliard.

‘Mudar para Nova York’ Falei em voz alta, para mim mesmo ‘Será que ela ainda vai querer estudar lá?’

‘Claro que vai’ Ouvi a voz de Andrei e me assustei. Pensei que estava sozinho na casa ‘Assim que ela colocar a cabeça no lugar, vai entender que precisa seguir com a vida’

‘O semestre começa daqui a uma semana, não temos muito tempo. Não vou conseguir ir para Nova York e deixa-la aqui, isso está fora de cogitação’ Falei já decidido e ele parou do meu lado na varanda.

‘Quando a mãe dela morreu, nunca odiei tanto a superficialidade das pessoas’ Ele deu um longo suspiro antes de continuar, encarando um ponto fixo no jardim ‘Não há palavras. Você não sabe onde encontrar força, mas acaba achando’ Ele desviou os olhos do jardim e me encarou ‘Podem ter outro filho. Foi um acidente, uma tragédia, algo imprevisível’

‘Tudo foi um acidente’

‘Não, não foi. Vocês se amam, qualquer um vê isso’

‘Não sei se ela vai querer ter outro filho comigo’

‘Claro que vai querer. Apenas esperem o tempo certo, vocês ainda são jovens demais’

Ficamos em silencio por um longo tempo, até que Dario e Afonso aparataram no jardim carregando um Filipe quase desacordado nos braços, enquanto Mario e Diego, com seus recém-completados 16 anos e licença para aparatar, surgiam logo depois rindo como duas hienas. Andrei resmungou algo que não entendi e desceu ao encontro deles. Sacudi a cabeça, rindo. Eles tinham dado um porre em Filipe por ter sobrevivido às repúblicas de Durmstrang e se tornado veterano. Uma tradição iniciado por Andrei II e Pillar, que segundo Evie, deram um porre poético nela e em Max. Ela alega lembrar apenas de flashes confusos daquela noite e vomitar nos pés da avó. Afastei aquela imagem derrotada da cabeça e voltei ao quarto. Evie já estava acordada e parei ao lado da cama, sentando no chão para ficar na altura dela. Ficamos nos encarando em silencio, no escuro do quarto, e ela tentava sorrir um pouco, mas era nítido que o esforço era grande demais mesmo para um gesto tão simples. Beijei sua mão e a segurei com as duas mãos.

‘Você precisa sair dessa cama, meu amor’ Reuni coragem para tentar mais uma vez faze-la reagir e ela não desviou os olhos de mim ‘Está acabando comigo ver você assim. Não sei o que devo dizer. Não sei o que devo fazer. Foi um acidente’ Comecei a falar e foi quase impossível impedir que algumas lágrimas escorressem pelo meu rosto ao ver que ela começava a chorar. As palavras saiam com dificuldade ‘Você não fez nada errado. Nós não fizemos nada errado. Simplesmente aconteceu. Eu te amo, quero passar o resto da minha vida com você. Mas temos que nos despedir do nosso filho agora. Tenho que ajuda-la a fazer isso e não sei como. Por favor, me ajude. Por favor’

Evie fechou os olhos por alguns segundos ainda chorando e apertou minha mão com toda força que tinha, fazendo que sim com a cabeça. Senti um alivio tão grande que, pela primeira vez em muitos dias, o sorriso que se abriu em meu rosto era sincero.

***

Chegamos a Madrid através de uma chave de portal na manha do dia 23 de Agosto. Madalena estava sozinha a nossa espera no jardim de sua casa, seus três filhos estavam aproveitando os últimos dias de férias na Bulgária com o avô. Era melhor assim, quanto menos platéia, menos doloroso seria. Evie estava melhor, na medida do possível. Não passava mais o dia inteiro dentro do quarto e concordava em me acompanhar para caminhadas pelo jardim da casa. Quando as meninas voltaram para visitá-la na manha seguinte, conseguiu pela primeira vez interagir e participar da conversa, mesmo que mais ouvisse do que falasse. Milla foi embora com os braços carregados de sacolas, com as coisas que foram compradas em Nova York tanto para o bebê dela quanto para o nosso, Evie fez questão de que ela ficasse com tudo.

Deixamos as malas em casa e seguimos de carro até o centro de Madrid. Madalena estacionou o carro as margens do rio Manzanares e descemos, mas ela decidiu ficar e nos dar privacidade. Descemos até um pequeno píer bem próximo da margem e retirei uma urna muito pequena do bolso, estendendo-a com a palma da mão para ela. Ela me abraçou e balançou a cabeça. Entendi que devia ser eu a fazer isso e abri a urna, olhando para ela antes.

‘Quer dizer alguma coisa?’ Perguntei, esperando.

‘Só que... Vamos sentir sua falta’ Ela falou olhando para a urna em minha mão e me abraçou mais forte ‘Você nunca será esquecido’

Beijei sua testa e despejei as cinzas a favor do vento nas águas do rio. Elas se espalharam por toda parte e fechei a urna, guardando no bolso outra vez e envolvendo o outro braço livre ao redor dela. Ficamos naquela posição por algum tempo, sem conversar, apenas olhando para a água. Foi ela que quebrou o silencio.

‘Nós vamos superar isso, não é?’ Ela me perguntou, ainda olhando para o rio.

‘Não vai ser fácil, mas sim, nós vamos superar isso’ Fui sincero. Sabia que ia demorar, mas nós íamos conseguir ‘Vamos fazer tudo certo dessa vez, com as coisas na ordem correta’

‘O que quer dizer com isso?’ Ela desviou os olhos da água e me encarou, com o rosto ainda apoiado contra o meu peito.

‘Quero dizer que vamos para Nova York semana que vem, estudar e termos nossas profissões. Vamos seguir com a vida, como estávamos planejando, e depois que eu me formar, vou pedir você em casamento. Você vai aceitar, é claro’ Fiz uma pausa propositalmente convencida e ela riu. Sua risada me deu força pra continuar ‘Então vamos fazer uma festa de dar inveja a qualquer um e vamos morar na nossa própria casa, com aquele cachorro estabanado destruindo nossos móveis. E depois de todo esse processo, você vai engravidar outra vez e teremos um monte de filhos, talvez até três de uma vez só’

‘Está louco?’ Ela riu outra vez. Era tão bom ouvir o som de sua risada de novo ‘Trigêmeos? Acha que vamos dar conta de três bebês de uma só vez?’

‘Eles vão nos enlouquecer, sem dúvida. Vão chorar a noite toda, babar tudo e arrancar os pêlos do Thor, mas nós vamos dar conta’ Abaixei a cabeça para encara-la e segurei seu queixo ‘Vamos dar conta porque nos amamos e está mais do que provado que ele ajuda a superar todas as dificuldades’

‘É, tem razão’ Ela deu um sorriso ainda magoado, mas lindo, e me beijou ‘Ele supera tudo’

Apertei-a mais contra meu corpo e ela deitou a cabeça em meu ombro, suspirando pesado. O caminho para superar tudo aquilo seria longo e difícil, mas íamos passar por ele juntos e no fim, íamos ser muito felizes.

Estava quase na hora de encontrarmos as meninas na recepção do hotel e Micah já estava pronto para descer, mas agora era eu quem ainda estava enrolada em um roupão, dominada pela preguiça. Meus pés ainda doíam e estavam um pouco inchados, então os deixei descansando em cima de uma almofada enquanto Micah me prendia pela cintura, me deixando tão aconchegada em seu peito que seria difícil a preguiça me abandonar. Uma de suas mãos mexia em cabelo e a outra alisava minha barriga. Esse gesto já era tão comum que às vezes nem percebia.

‘Vocês compraram a Babies “R” Us toda’ Micah comentou olhando as sacolas espalhadas pelo chão do quarto ‘Sobrou alguma coisa pros outros clientes?’

‘Vivi deixou algumas sobras, mas nem tudo é meu, comprei um monte de coisa pra Milla também!’ Falei animada ‘Como não sabemos o sexo ainda, compramos tudo amarelo e branco’

‘A criança vai parecer um pomo de ouro’ Ele riu.

‘Como você é implicante... Não são tão amarelas assim!’ Ele riu mais alto e me beijou.

‘O bebê está quieto’ Comentou de repente, olhando para minha barriga ‘Ele costuma se mexer bem, não?’

‘É verdade, mas acho que ainda é cedo para ele se mexer o tempo todo’ Lembrei do que o médico falou e não me preocupei ‘Hoje ele ficou quietinho’

‘Já estão prontos?’ Ouvimos uma batida na porta e Micah a destrancou usando a varinha, deixando Tessa entrar ‘Evie, você ainda está assim?’

‘Ai desculpa, me distrai conversando’ Falei levantando apressada da cama e correndo pro banheiro ‘Fico pronta em um segundo!’

‘Tessa, é normal que o bebê não tenha se mexido hoje?’ Ouvi Micah perguntar.

‘Ele ainda não está na fase em que se mexe o dia inteiro e deixa Evie desconfortável, mas não é normal não ter se mexido o dia inteiro’ Senti o tom de voz dela preocupado e vesti a blusa depressa, abrindo a porta do banheiro. Tessa me encarou ‘Quando foi a última vez que você sentiu o bebê mexer?’

‘Ontem, na parte da tarde’ Respondi começando a me preocupar também.

‘Pode não ser nada, mas prefiro levar você até um hospital, só pra ter certeza’ Ela falou por fim e Micah já se pôs de pé ao meu lado ‘Vivi e Nikki podem segurar a reserva do restaurante, eu acompanho vocês’

Nem mesmo contestei e peguei minha bolsa em cima da mesa, saindo com ela. Tessa era médica e mesmo não sendo obstetra, estava acompanhando todo o processo da minha gravidez com o meu médico, então se ela achava que era melhor conferir se tudo estava bem, não tinha razão para discutir. Micah foi todo o caminho até o hospital segurando firme minha mão e podia sentir que ele estava preocupado, mas não deixava transparecer, talvez para me acalmar.

Tessa conhecia a obstetra de plantão naquele dia e passei a frente de algumas pessoas, então assim que chegamos fui direto para o quarto e esperei apenas alguns minutos até que a médica entrasse e depois que Tessa explicou rapidamente o que a motivou a me levar até lá, ela ligou o aparelho de ultrassom e começou a passar na minha barriga. Ela usou o aparelho por alguns minutos, sempre captando a mesma imagem, paralisada. Não conseguia ver tudo com clareza, mas podia identificar o formato do bebê, já inteiramente desenvolvido por fora.

‘Quando foi a última vez que o bebê se mexeu?’ Ela perguntou em um tom de voz que não passava nem calma nem preocupação.

‘Ontem, na parte da tarde’ Respondi tentando ver o que ela via no monitor, mas sem sucesso.

‘Nenhum sangramento? Espasmos?’ Neguei com a cabeça e ela parecia intrigada ‘vou fazer um zumbido’ Ela continuou passando o aparelho na minha barriga, fazendo um barulho alto. Repetiu três vezes e desligou.

‘Tem certeza que colocou na cabeça?’ Tessa perguntou já alarmada e comecei a me apavorar. A médica já estava limpando minha barriga ‘E quanto ao liquido amniótico? Se...’

‘Por favor, sentem-se, vocês dois’ Ela falou olhando cautelosa para Tessa e Micah não se moveu, mas apertou minha mão ‘Eu observei por mais de 5 minutos. Não há batimentos cardíacos, não há movimento do corpo. Não há resposta ao estimulo acústico’ Apertei a mão de Micah com força, sem precisar continuar ouvindo para saber o que ela diria ‘Eu sinto muito, mas o bebê está morto. Pode ter sido uma infecção, um acidente com o cordão, eritroblastose, pré-eclampsia, talvez nunca saibamos’ Vi Tessa desabar na cadeira, sem uma reação definida. Eu ainda olhava imóvel para a médica ‘Vou interná-la pra fazer uma indução’

‘Indução?’ Consegui perguntar por fim.

‘Temos que tirar o bebê rápido’ Ela explicou.

‘Eu vou entrar em trabalho de parto?’

‘Sinto muito’ Ela parecia sincera ‘Vou pedir uma epidural e fazer sua ficha’

‘A pressão dela estava boa, nunca teve febre nem nada. O que aconteceu?’ Tessa falou ainda sentada e olhando para a parede.

‘Faremos uma autopsia depois do parto para descobrir’ A médica respondeu e saiu da sala.

Micah ainda apertava minha mão com força, de pé ao lado da cama. Quando a porta se fechou ele me encarou com uma expressão de pura dor, mas ao mesmo tempo dura. Puxei-o para baixo e ele me abraçou. Comecei a chorar desesperada, sem conseguir falar.

ººº

Depois do que pareceu uma eternidade, Evie começou a ser preparada pelas enfermeiras para o parto. Vivi e Nikki já estavam no hospital, mas se encarregaram de avisar nossas famílias e não estavam no quarto quando a equipe medica chegou. Não sai do lado dela um segundo sequer, e nem Tessa, que pediu para acompanhar tudo. Eles a anestesiaram e Evie não parava de chorar. Aquilo estava me deixando desesperado, pois não havia nada que eu pudesse fazer para acalmá-la. Estava de mãos atadas e aquela sensação de impotência, quando a pessoa que você ama está sofrendo, devia ser a pior sensação do mundo.

Eu apertava a mão dela, nervoso, enquanto a via se esforçar ao máximo para empurrar o bebê para fora. Seu rosto estava molhado de suor e ela já se sentia fraca, sem forças. Encostou a cabeça na cama chorando, mas a puxei de volta, beijando sua testa.

‘Não consigo mais’ Disse chorando, olhando para mim suplicante.

‘Só mais um pouco, meu amor’ Apertei sua mão e a beijei ‘Já vai terminar, eu prometo’

‘Evie, só mais uma vez’ Tessa falou a olhando por cima da barriga ‘Mais uma e ele sai. Conte até três e empurre’

Ela respirou fundo e contou até três, reunindo toda força que ainda lhe restava. Evie gritava tanto que parecia ser uma dor horrível, era como se estivesse morrendo, mas segundos depois vi a médica puxar um bebê muito pequeno e leva-lo embora. Deitaram-no em uma incubadora e o cercaram rápido.

‘Acabou’ Beijei sua testa, também cansado ‘Acabou’

‘O cordão enroscou no pescoço’ A médica falou ainda perto de nós ‘Ele se virou e se enroscou no cordão umbilical. Não há o que fazer para evitar isso. Não é genético, não é uma infecção. É só má sorte’ Ela levantou e se juntou aos outros médicos.

Deitei a cabeça sobre a dela e ficamos encarando o cerco de médicos em volta do bebê, que não emitia som algum. Ela afirmava que a dor já havia passado, mas ainda chorava. Eu me esforçava ao máximo para transparecer calma e demonstrar força perto dela. Os médicos se afastaram do vidro e o vi de relance. Era tão pequeno e frágil, e não movia um músculo. A médica o pegou no colo e caminhou até a cama. Evie estendeu a mão para segura-lo e virei o rosto, me afastando sem conseguir olhar pra ele.

‘Me perdoe’ Evie disse alisando seu rosto, as lágrimas escorrendo ‘Eu te amo’

Ouvi-a dizer enquanto Tessa se aproximava tentando controlar o choro e abri a porta da sala com um soco, saindo para o corredor vazio àquela hora da noite. Minha vontade era chutar tudo que estivesse em meu caminho até me acalmar, mas não conseguia reagir a nada. Andei até as poltronas perto da janela sem rumo, não sabia para onde ir e nem o que fazer.

‘Micah?’ Ouvi a voz de Michael e me virei rápido, o encontrando parado a poucos passos de mim, os braços abertos e uma expressão de dor.

Cheguei até ele numa passada só e o abracei com força, sem conseguir mais segurar as lágrimas. Enterrei a cabeça em seu ombro e me permiti chorar como uma criança.

‘Está tudo bem, filho’ Michael batia de leve nas minhas costas com uma mão e segurava minha cabeça com a outra. Sua voz era triste, mas era bom ouvi-la ‘Vai ficar tudo bem’.

Thor, o filhote de Labrador que Micah me dera de natal, corria loucamente pelo jardim da mansão do meu avô, tentando abocanhar um passarinho. Eu estava sentada no gramado rindo da diversão dele e Micah estava deitado com a cabeça apoiada em minha barriga, alheio as constantes trombadas que Thor dava nas árvores. Ele agora estava grande, embora ainda fosse um filhote de 8 meses. Estava tão grande e estabanado que quando entrava furtivamente dentro de casa arrastava tudo que estava em seu caminho.

‘Gosto de Diego’ Micah falou distraído e desviei a atenção de Thor, que agora rolava na grama ‘É um nome legal, não acha?’

‘Merlin, você já está pensando em nomes?’ Eu ri ‘Micah, mal entrei no quarto mês, sequer sabemos se é menino ou menina’

‘E daí? Nada impede que já tenhamos nomes em mente. E logo dará para saber’

‘É, tudo bem, tem razão... E Diego é legal, mas já temos um na família. Quer outro? E se for tão endiabrado quanto o original?’

‘Pensando por esse lado... E Eduardo?’

‘Por que está escolhendo nomes latinos?’ Achei graça.

‘Porque sei que prefere esses, e gosto deles’

‘Certo. Eduardo é bonito, mas está pensando apenas em nomes de meninos? E se for uma menina?’

‘Que nome quer se for uma menina?’

‘Eva’ Respondi de imediato e Micah riu.

‘Está rindo de mim, mas também andou pensando, não é?’ Revirou os olhos e ele sentou ao meu lado ‘Imaginei que fosse escolher esse nome’

‘Se ela estivesse aqui estaria dizendo que ia adorar ver a cara de surpresa das pessoas ao descobrirem que ela já era avó “tão nova assim”. Ia adorar isso’ Falei imitando o jeito de falar da minha mãe e não pude deixar de rir ao perceber que minha voz soou exatamente igual à dela.

‘Se for uma menina, vai se chamar Eva então. E como sei que ela vai ser tão linda quanto à mãe, vai combinar com o nome’ Micah me abraçou e caímos deitados na grama, nos beijando.

‘Merlin, por favor, vocês não vão fazer outro filho, não é?’ A voz de Dario nos trouxe de volta a realidade e sentamos na grama sem graças.

‘Não, um só está ótimo’ Respondi ainda um pouco corada.

‘Ótimo. Tia Madalena está chamando para o lanche, e antes que diga que não está com fome, ela mandou dizer que não quer saber e que você vai lanchar com os outros, pois agora precisa se alimentar por dois’

‘Sua tia tem razão, vamos’ Micah ficou de pé e estendeu a mão para me ajudar.

‘Minha tia quer é me deixar gorda’ Resmunguei caminhando de mãos dadas com Micah e ao lado do meu primo de volta para a mansão ‘Aqui, Thor, vem garoto’

‘Esse estado é inevitável, prima’ Dario riu abaixando para pegar a coleira no pescoço de Thor, que tentou pulou em seu colo ‘Mas não liga, daqui a 5 meses passa’

‘Vou ficar horrível gorda’ Resmunguei outra vez.

‘Você pode inchar ou encolher, que pra mim vai continuar linda’

‘E se eu encolher e ficar com 20 cm?’

‘Então eu carrego você no meu bolso’ Micah respondeu beijando minha bochecha e eu ri, enquanto Dario revirava os olhos e ria também.

ººº

O mês de Julho estava passando com rapidez e Agosto estava batendo a porta. Micah agora morava comigo na casa de meu avô enquanto seu treinamento na Academia de Aurores não começava. Ele havia se transferido para a academia de Nova York depois que recebi a carta de admissão para a Escola Juilliard, assim não teríamos que ficar longe um do outro e ele poderia me ajudar muito mais durante os meses que ainda restavam até o nascimento do nosso bebê. Estávamos na cidade com Vivi, Tessa e Nikki por uma semana, pois eu ainda tinha uma audição em Juilliard que seria apenas de praxe e aproveitaríamos para começar a preparar as coisas, assim como também fazer algumas compras.

Já no 4º mês de gravidez e com minha barriga começando a ficar em evidencia, Vivi, Tessa e Nikki insistiam em começar a comprar coisas para o bebê e usaram a viagem à Nova York como a desculpa perfeita para não se desperdiçar uma oportunidade daquela, como Tessa repetia incansavelmente. As coisas de Juilliard e Academia de Aurores foram resolvidas num piscar de olhos e tudo que via na minha frente depois disso eram coisas de bebê. Broadway? Acho que nem passei perto dela.

‘Evie, quero lhe pedir uma coisa’ Vivi falou subitamente, enquanto atirava algumas roupas de bebê em um carrinho já abarrotado ‘E já vou lhe avisando que não aceito não como resposta’

‘Então não vai me pedir nada, vai exigir’ Brinquei e ela riu, mas em tom sério.

‘É, de certa forma’ Ela me encarou com o ar mais maternal que poderia assumir ‘Quero que venha morar comigo depois que o bebê nascer’ Ameacei interromper e ela ergueu a mão, me impedindo ‘Não adianta dizer que terão tudo sob controle, pois não terão. Posso ajudar bem mais do que imagina e você não será mais obrigada a dormir no alojamento de Juilliard no próximo semestre, então não tem desculpa’

‘Vivi, planejávamos resolver isso sozinhos’ Tentei recusar a oferta, embora fosse mesmo ser a melhor opção. Micah e eu éramos os únicos responsáveis por isso, a vida de mais ninguém deveria sofrer alterações em sua rotina ‘Não queremos atrapalhar ninguém’

‘Não vai atrapalhar e não estou propondo que vivam debaixo do meu teto eternamente, apenas nos primeiros meses. Até que possam se sustentar sozinhos e cuidar de um bebê sem esquecê-lo dentro de um cesto de roupa suja’ Fiz uma careta e ela riu ‘Horrível, eu sei, mas acontece’

‘Posso ao menos pensar?’ Perguntei me sentindo encurralada ‘Pelo menos conversar com Micah antes?’

‘Claro que pode’ Ela sorriu e atirou outro punhado de roupas no carrinho ‘Mas já sabe que vão ter que se mudar’

Revirei os olhos para ela, mas acabei rindo. Vivi era persistente e sabia que não haveria argumentos no mundo capaz de fazê-la mudar de idéia. Sabia também que não podia recorrer a Nikki e Tessa, pois tinha absoluta certeza que elas estavam juntas nisso. Terminamos as compras, demasiada exageradas, conversando sobre outras coisas sem voltar ao assunto. Quando saímos da loja, Micah, Nikki e Tessa já nos esperavam do lado de fora da loja, parecendo exaustos. Eles haviam percorrido toda a 5th Avenue completando uma lista de exigências de amigos e parentes.

‘Podemos ir para o hotel?’ Micah perguntou em tom suplicante quando me viu ‘Descansar um pouco antes de sair pra jantar, acho que não vou agüentar emendar’

‘Pretende se formar como auror com essa disposição, Micah?’ Tessa o provocou.

‘Prefiro enfrentar 100 dementadores a fazer compras, e ainda por cima pros outros!’ Ele fez uma careta de tédio e rimos.

‘Sim, vamos pro hotel, também não agüento emendar com o jantar’ Ele pegou minhas sacolas e segurou a minha mão.

O hotel não era longe e voltamos a pé. Combinamos de nos encontrarmos na recepção às 20h e cada um foi para o seu quarto. A cama enorme e confortável do quarto era tão convidativa que me atirei de costas nela assim que me livrei dos sapatos, abraçando os travesseiros macios. Devo ter adormecido, pois quando senti Micah se apoiando com cuidado em cima de mim, ele estava de banho tomado e muito cheiroso. Seus cabelos ainda molhados deixaram uma marca na minha blusa e ele usava apenas o roupão do hotel. Minhas mãos automaticamente seguraram sua nuca enquanto o beijava sem querer interromper e ele me prendeu contra o colchão. Acho que não estava tão cansada assim...

((Continua...))